Em recente entrevista que fiz com o professor Erly dos Anjos, ele traçou um perfil interessante sobre o modelo de violência do Brasil urbano, no qual executores a mando dos chefes do tráfico representariam a continuidade de uma cultura que se criou nas fazendas dos antigos coronéis com seus jagunços e passou pelos crimes cometidos por pistoleiros de aluguel, empreendedores da morte, principalmente nos rincões do interior brasileiro.
Numa ilação minha, os chefes do tráfico do Brasil urbano
representariam a continuidade dos coronéis do Brasil agrário da primeira metade
do século passado, embora com outras nuances e características próprias daquilo
que vivem – e morrem.
A leitura de “O Jagunço Velho”, do escritor baiano Araken Vaz Galvão, leva-nos de volta àquele Brasil dos coronéis por meio da história do jagunço Clemente, pau mandado do coronel Gumercindo Vaz Sampaio, cujo nome homenageia a família do autor com tal realismo que chegou a obrigar-me a consultá-lo se, por acaso, não seria o alterego do seu avô, em cuja fazenda Galvão foi criado depois de órfão de pai, em Jequié, sertão baiano, justamente o cenário de todo o drama do romance. “Não, meu avô e meus tios, mesmo sendo coronéis, eram santos”, respondeu-me o autor.
Desfeita a dúvida, vamos ao drama. Clemente é demais para
ser assim pronunciado em sertanejês rudimentar, então vira Quelemente e, por
fim, a corruptela Quelé, com a qual vai percorrer todo o livro, até perder o
protagonismo para Agenildo, que ficou com a corruptela Nildo, seu quase filho –
ou seria mesmo filho? –, a dúvida permanece.
Araken não perde em nada para os grandes romancistas sociais
de nossa literatura, tais como Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz, Guimarães
Rosa, ao trazer-nos uma compreensão clara do “homo nordestinus”, bem como da
sociologia e da paisagem do sertão brasileiro. Por vezes, faz longas viagens
pela mitologia grega para construir sua trama como a nos apontar que o homem é
o mesmo, seja na Grécia dos grandes filósofos ou na aridez do inculto sertão em
que foi criado e do qual carrega suas marcas.
Quelé, o jagunço velho, ao mesmo tempo em que faz a coisa é
também por ela feito. Matador, ou melhor, “consertador da coisa errada” (isso
não está na obra, mas bem poderia estar), sempre a mando do coronel Gumercindo,
guarda em si todos os dramas de ser humano, o que é revelado pelo episódio que
vai lhe colocar no centro da narrativa, até que ao fim da vida deseja ser
justiçado pela injustiça que teria cometido contra a história de seu “suposto”
filho.
Para além da intertextualidade com os clássicos que permeiam
a cultura ímpar do autor-narrador, como forma de colocar Quelé na história humana,
com todas as suas contradições, Araken nos coloca também dentro da história do
próprio Brasil, apontando-nos como bons ideais podem ser usurpados e seus
atores protagonizarem novos interesses, como a pouco conhecida atuação dos
tenentes dos anos 20 e 30 para destruírem a estrutura política brasileira,
baseada no coronelismo, a mando do ditador Getúlio Vargas.
Os coronéis, com seus exércitos de jagunços, que perseguiram
a “Coluna Prestes” até que seus homens se internaram na Bolívia, eram os
grandes líderes políticos do Brasil arcaico, devidamente cooptados pelos
líderes nacionais da primeira República até a Revolução de 30. Parece que a
estrutura não mudou muito nos dias atuais, sendo substituída pelos donos dos
partidos políticos da modernidade, mas jagunços já não há – mas assassinos da
moral alheia, estes sim, proliferam. A ditadura varguista cuidou de usar os
antigos tenentes para combater o poder dos coronéis, aproveitando sua experiência
e conhecimento dos rincões nacionais. E, se o poder estava nos exércitos de
jagunços, que eles fossem extintos.
Quelé representa essa figura mítica do jagunço desempregado,
que termina a vida em meio a dramas existenciais e, conta a lenda, não morreu, mas
foi arrebatado a algum tipo de céu nas garras de um enorme pássaro. Tudo isso
narrado com o estilo, fantasticamente, realista do autor, leva o leitor a
embrenhar-se na cena criada a partir da tradição oral do sertanejo, se é que
até mesmo isso não seja uma ficção trazida à realidade por nossa imaginação.
Agenildo é uma espécie de filho gerado pela dramática história sertaneja no coração bruto de um jagunço e no peito dócil da moça defraudada pelo coronelzinho. Tudo tendo o coronel como o deus que governa a vida desses homens rudes, em obediência cega e eterna dependência emocional. E como o filho dessa história, pode ela reproduzir ou não, com sua amante dama-moça a governar-lhe a vida a partir da alcova, antes e depois do amor.
Quem disso duvidar, que seja caçado pelo mesmo gavião
gigante que levou em suas garras o corpo moribundo de Quelé, mas que deixou em
Agenildo plantado o amor sertanejo de pai para filho, independente do sangue
que corre nas respectivas veias.
(José Caldas da Costa,
jornalista e geógrafo, com estudos em Letras e Psicologia Positiva)
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