“O Jagunço Velho”: para entender o imaginário do Brasil - O Patim

domingo, 26 de dezembro de 2021

“O Jagunço Velho”: para entender o imaginário do Brasil

Em recente entrevista que fiz com o professor Erly dos Anjos, ele traçou um perfil interessante sobre o modelo de violência do Brasil urbano, no qual executores a mando dos chefes do tráfico representariam a continuidade de uma cultura que se criou nas fazendas dos antigos coronéis com seus jagunços e passou pelos crimes cometidos por pistoleiros de aluguel, empreendedores da morte, principalmente nos rincões do interior brasileiro.

Numa ilação minha, os chefes do tráfico do Brasil urbano representariam a continuidade dos coronéis do Brasil agrário da primeira metade do século passado, embora com outras nuances e características próprias daquilo que vivem – e morrem.


A leitura de “O Jagunço Velho”, do escritor baiano Araken Vaz Galvão, leva-nos de volta àquele Brasil dos coronéis por meio da história do jagunço Clemente, pau mandado do coronel Gumercindo Vaz Sampaio, cujo nome homenageia a família do autor com tal realismo que chegou a obrigar-me a consultá-lo se, por acaso, não seria o alterego do seu avô, em cuja fazenda Galvão foi criado depois de órfão de pai, em Jequié, sertão baiano, justamente o cenário de todo o drama do romance. “Não, meu avô e meus tios, mesmo sendo coronéis, eram santos”, respondeu-me o autor.

Desfeita a dúvida, vamos ao drama. Clemente é demais para ser assim pronunciado em sertanejês rudimentar, então vira Quelemente e, por fim, a corruptela Quelé, com a qual vai percorrer todo o livro, até perder o protagonismo para Agenildo, que ficou com a corruptela Nildo, seu quase filho – ou seria mesmo filho? –, a dúvida permanece.

Araken não perde em nada para os grandes romancistas sociais de nossa literatura, tais como Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz, Guimarães Rosa, ao trazer-nos uma compreensão clara do “homo nordestinus”, bem como da sociologia e da paisagem do sertão brasileiro. Por vezes, faz longas viagens pela mitologia grega para construir sua trama como a nos apontar que o homem é o mesmo, seja na Grécia dos grandes filósofos ou na aridez do inculto sertão em que foi criado e do qual carrega suas marcas.

Quelé, o jagunço velho, ao mesmo tempo em que faz a coisa é também por ela feito. Matador, ou melhor, “consertador da coisa errada” (isso não está na obra, mas bem poderia estar), sempre a mando do coronel Gumercindo, guarda em si todos os dramas de ser humano, o que é revelado pelo episódio que vai lhe colocar no centro da narrativa, até que ao fim da vida deseja ser justiçado pela injustiça que teria cometido contra a história de seu “suposto” filho.

Para além da intertextualidade com os clássicos que permeiam a cultura ímpar do autor-narrador, como forma de colocar Quelé na história humana, com todas as suas contradições, Araken nos coloca também dentro da história do próprio Brasil, apontando-nos como bons ideais podem ser usurpados e seus atores protagonizarem novos interesses, como a pouco conhecida atuação dos tenentes dos anos 20 e 30 para destruírem a estrutura política brasileira, baseada no coronelismo, a mando do ditador Getúlio Vargas.

Os coronéis, com seus exércitos de jagunços, que perseguiram a “Coluna Prestes” até que seus homens se internaram na Bolívia, eram os grandes líderes políticos do Brasil arcaico, devidamente cooptados pelos líderes nacionais da primeira República até a Revolução de 30. Parece que a estrutura não mudou muito nos dias atuais, sendo substituída pelos donos dos partidos políticos da modernidade, mas jagunços já não há – mas assassinos da moral alheia, estes sim, proliferam. A ditadura varguista cuidou de usar os antigos tenentes para combater o poder dos coronéis, aproveitando sua experiência e conhecimento dos rincões nacionais. E, se o poder estava nos exércitos de jagunços, que eles fossem extintos.

Quelé representa essa figura mítica do jagunço desempregado, que termina a vida em meio a dramas existenciais e, conta a lenda, não morreu, mas foi arrebatado a algum tipo de céu nas garras de um enorme pássaro. Tudo isso narrado com o estilo, fantasticamente, realista do autor, leva o leitor a embrenhar-se na cena criada a partir da tradição oral do sertanejo, se é que até mesmo isso não seja uma ficção trazida à realidade por nossa imaginação.

Agenildo é uma espécie de filho gerado pela dramática história sertaneja no coração bruto de um jagunço e no peito dócil da moça defraudada pelo coronelzinho. Tudo tendo o coronel como o deus que governa a vida desses homens rudes, em obediência cega e eterna dependência emocional. E como o filho dessa história, pode ela reproduzir ou não, com sua amante dama-moça a governar-lhe a vida a partir da alcova, antes e depois do amor.

Araken Vaz Galvão é fecundo escritor, com quase 40 obras, que trazem sua experiência de vida do sertão ao exílio político, passando pela luta revolucionária contra a ditadura dos antigos tenentes. O que mais pode-se dizer de “O Jagunço Velho”, além de tecer-lhe loas? É finalizar lamentando que esteja tão longe do público leitor deste País, cada vez mais pobre de cultura, e que mereceria sair da limitada esfera da edição do autor para ganhar as melhores bibliotecas publicado por uma editora das grandes, com o devido marketing literário.

Quem disso duvidar, que seja caçado pelo mesmo gavião gigante que levou em suas garras o corpo moribundo de Quelé, mas que deixou em Agenildo plantado o amor sertanejo de pai para filho, independente do sangue que corre nas respectivas veias.

(José Caldas da Costa, jornalista e geógrafo, com estudos em Letras e Psicologia Positiva)

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