novembro 2021 - O Patim

quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Crônicas profissionais: a mulher que paria cobras

11.11.21
Crônicas profissionais: a mulher que paria cobras

Em mais de 40 anos de profissão, com faro de repórter desde os sete anos de idade quando vi a cena que me levou a escrever um livro premiado quatro décadas depois, a gente vive muitas histórias. Vou procurar compartilhar algumas aqui.

A de hoje aconteceu quando, na segunda metade da década de 80, eu decidi morar em Colatina (ES) com minha família para que minha mulher ficasse mais perto da mãe dela e acabei convidado para chefiar a sucursal de A Gazeta, com 28 municípios no meu radar. Apoio da empresa não faltava e eu me soltava, porque, afinal, reportagem foi o que eu sempre gostei de fazer.

Publiquei, originalmente, a crônica em outro blog que criei com o mesmo nome desse, mas em outra plataforma e ao qual não tenho mais acesso, a não ser via links para reler o que nele escrevi. A propósito, o lugar onde tudo aconteceu foi na roça, em Vila Itaperuna (na foto de Gilberto Gil), Barra de São Francisco. 

Boa leitura..  


A mulher que paria cobras

25 DE JULHO DE 2008

 

Deixei a posição confortável no posto avançado da redação do jornal, no Noroeste do Espírito Santo, e viajei 150 quilômetros para meu maior desafio profissional: descobrir o que havia por trás da comoção social que se abatera sobre uma cidade inteira desde que surgiu a primeira informação de que uma mulher estava parindo cobras.

Precisava ser honesto tanto com a protagonista, quanto com aquela comunidade e com os milhares de leitores do jornal onde eu trabalhava. Precisava dar seriedade a um fato por si só jocoso. Precisava respeitar o ser humano por trás da mulher simples, lavradora, morando numa casa humilde num grotão à margem esquerda do rio São Mateus, aonde cheguei passando de carro sobre uma ponte que era apenas dois mourões deitados sobre o vão de um dos afluentes.

Precisava respeitar a reputação dos médicos que a atenderam mais de uma vez e, ao mesmo tempo, preservar a minha própria. Dependendo do que fizesse, jamais seria levado, novamente, a sério em minhas reportagens e poderia procurar outra profissão.

Primeiro, vieram os telefonemas da cidade para o próprio escritório que eu chefiava. A Redação, na sede do jornal, não levou a história a sério. Minha editora de setor, profissional experiente, riu do fato. Recolhi minhas ferramentas. Mas o caso voltou a se repetir e dessa vez a comunidade telefonava não mais para mim, mas direto para Vitória, gerando uma demanda para que eu fosse, então, verificar o que estava havendo.

Viajei ansioso e sozinho. Tinha meus contatos em cada cidade da região e eles confirmaram que a comunidade estava em pânico. Falava-se de delírio a coisas do demônio. Havia um profundo incômodo. E eu ficava imaginando: e a cabeça dessa mulher? E o marido? Será que ela tinha outros filhos? Quais seriam os apelidos que ganhariam na escola depois disso? Zé Cobrinha? Maria Serpente?

Através dos meus contatos, encontrei fácil a enfermeira que morava na Vila Itaperuna e que, pelo menos por duas vezes, conduziu a mulher com dores de parto para hospitais da região. Os médicos já não queriam atendê-la. A enfermeira disse que viu a mulher parir cobras. E mais: que a mulher tinha as cobras guardadas dentro de vidros grandes em casa. Com um guia local, fui à tal casa.

Encontrei um casal de lavradores muito simples, numa casa sobre um pequeno platô cortado numa ribanceira, aonde se chegava por uma estrada estreita e sinuosa. A casa era cercada de bananeiras e, mais no alto, plantações de café. Percebi que o solo assemelhava-se à terra de minha infância, onde encontrávamos cobras, minhocas e minhocuçus, as famosas cobras de duas cabeças.

Puxei conversa e a mulher parecia assustada. Logo chegou o marido, ainda mais ressabiado. Coitado, ele não entendia nada. Que estranho mistério era aquele? Afinal, o que estaria ele gerando no útero da mulher que escolheu para viver seus dias de maior vigor e com quem pretendia ficar até que a morte os separasse?

Entrei pela casa adentro, sombria, até a salinha onde, sobre o guarda-louças, estavam dois vidros grandes. Dentro deles, as cobras que a mulher pariu. Olhei para os vidros, distingui os minhocuçus, olhei para a enfermeira. Não trocamos palavras, apenas olhares.

A mulher falou das dores uterinas, da dificuldade de transporte, dos médicos tentando evitá-la nos hospitais, da vergonha de não poder mais ir à cidade sem antes ser antecedida pelos fofoqueiros de plantão. Quando passava, os comerciantes chegavam nas portas das lojas, as mulheres corriam às janelas, as crianças corriam, como se brincassem na rua e gargalhavam. Era um drama.

Saí dali com uma história e um desafio: como contá-la aos meus leitores, sem cair no ridículo e sem aumentar o drama da mulher. Descrevi o que vi e relatei o que ouvi do casal, da enfermeira, dos médicos, que não queriam aparecer na história, e de pessoas de diversos segmentos. Mas faltava um fechamento.

Lembrei-me de que o Estado tinha, na secretaria própria, um serviço ligado à saúde mental. Foi minha sorte. Consegui falar com o médico-chefe, Ítalo, um psiquiatra e psicanalista, que deu-me um depoimento belíssimo e cheio de simbologias que remetiam ao inconsciente medieval, representado em figuras pintadas com mulheres de cujas vaginas fluíam cobras aos montes como símbolo do poder feminino.

E, contava-me Ítalo, consciente ou inconscientemente, toda mulher sabe do poder de sua genitália sobre a humanidade. Tergiversou pela biologia para demonstrar a impossibilidade de geração de cobras no útero feminino, cujo comportamento é de expelir aquilo que nele não mais cabe.

Assim, quando crescemos o suficiente, um dia o útero que nos abrigava nos expulsou. Assim, ao ver-se invadido por um corpo estranho, o útero daquela camponesa (para agradar aos comunistas) o expulsava e, somente então, tornava-se público aquilo que havia ocorrido na privacidade dos cômodos daquela casa ou, quem sabe, ao abrigo das bananeiras que sombreavam o platô de terra vermelha.

José Caldas da Costa – jornalista, licenciado em Geografia, escritor

Vila Velha, ES, 25 de julho de 2008

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sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Comando Vermelho, PCC e os erros de uma geração

5.11.21
Comando Vermelho, PCC e os erros de uma geração

Erros de uma geração somente são sentidos uma ou duas gerações à frente. Especialmente na política. Assim é que hoje colhemos os frutos de erros cometidos durante o regime militar imposto ao Brasil entre 1964 e 1985. Erros do governo, erros da oposição.

Minha pesquisa levou a um capítulo especial dedicado ao tema em “Caparaó – a primeira guerrilha contra a ditadura” (Boitempo, SP, 2007). Nele abordo, por exemplo, o erro cometido pelo governo militar de misturar presos políticos com presos comuns, e o erro cometido pelos presos políticos de acharem que era possível “ganhar os presos comuns para a causa”.

Tanto um quanto o outro são admitidos por quem os cometeu. No caso do governo, eu me ative à vasta literatura que pesquisei, juntamente com jornais e revistas. No caso da resistência, baseei-me, principalmente, em fontes primárias, enquanto entrevistava os personagens do episódio central do livro.

As chamadas maiores organizações criminosas brasileiras nasceram desses e outros erros. Por exemplo, o Comando Vermelho tem um nome sugestivo exatamente de sua origem no relacionamento de presos comuns e políticos em penitenciárias como Frei Caneca e Ilha Grande (na foto do acervo de O Globo). Nasceu como Falange Vermelha.

Chegamos ao capricho de ter um livro contando a história da origem dessa organização: “Quatrocentos contra um”, de William da Silva Lima, o “Professor”, que teve os primeiros contatos com presos políticos ao encontrar-se com marinheiros presos em 1963 e depois com outros presos políticos do período pós-golpe. Assim como ele, quantos outros tiveram esse contato!

Um dos meus entrevistados, Avelino Capitani, me disse: “Cometemos a ingenuidade de acreditar que poderíamos conquistar os presos comuns para nossa causa”. E chegou a ser convidado, depois que cumpriu pena por integrar a resistência ao regime, para “assessorar” uma organização criminosa do Rio de Janeiro. Recusou o convite, “por princípio”. Mas certamente outros pegaram. “A proposta era boa”, admite.

A distensão lenta e gradual fez com que o regime militar se prolongasse por uma geração – ou seja, quem era criança nos anos 60 cresceu sob o regime; e muitos desses repetiram suas lições para seus filhos. De um modo ou de outro. Não se pode saber, com certeza, por quantas gerações os erros de uma podem se perpetuar, até se dissipar ante novos ensinos e práticas sociais.

O PCC (Primeiro Comando da Capital), criado nos presídios paulistas, tem, segundo as autoridades, em Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, nascido em 1968, um de seus fundadores e seu líder nas últimas décadas, mesmo preso na chamada penitenciária de máxima segurança máxima do País – condenado a mais de 300 anos de prisão.

E quem é Marcola? Um “cliente” do sistema penitenciário desde os 18 anos. Isto depois de ter passado por instituições de menores na infância e adolescência. Filho de um boliviano e uma brasileira, que morreram e o deixaram órfão pelas ruas de São Paulo. Menino cheirador de cola, virou Marcola. Foi de trombadinha a líder de organização, registra a Folha de São Paulo. Curioso é que sua formação intelectual se deu, inteiramente, nas prisões, lendo grandes pensadores.

Inegável é que Marcola é fruto de mais um desses erros que vão se perpetuando. O Brasil está para os bolivianos pobres assim como os Estados Unidos estão para os mexicanos. Eles, os bolivianos, são hoje o maior grupo de imigrantes em São Paulo – onde foram e são explorados em regimes análogos a escravidão, especialmente em oficinas de confecções de bairros populares, como Braz. Nessas oficinas nascem e crescem crianças que, se derem sorte, poderão escapar de ser um novo Marcola – mas o risco de repetir é muito grande.

Notícias recentes da imprensa dão conta de que Comando Vermelho e PCC ameaçam explodir postos de gasolina e caminhões tanque para obrigarem o Governo a agir na redução do preço dos combustíveis. Mas o pior parece que ainda está por vir. O Jornal da Band noticiou que mercenários africanos, continente de onde procede, atualmente, a maior leva de imigrantes para o Brasil, estariam treinando em guerrilha urbana membros de facções criminosas no interior da floresta amazônica.

O esgarçamento social, tanto do ponto de vista econômico quanto de valores, torna o campo fértil para o surgimento de coisas assim. Existem “exemplos” que surtem efeitos muito rápidos, mas outros virão depois de uma ou duas gerações. Efeitos econômicos são sentidos de imediato, mas somente bem depois sentiremos, por exemplo, o verdadeiro efeito dos desatinos verborrágicos e de desconstrução de valores humanos praticados, principalmente, pelo atual inquilino do Palácio do Planalto.

Quando leio sobre a saga de Oswaldo Cruz e sua cruzada vacinista de 100 anos atrás, fico pensando se a humanidade avançou ou regrediu em um século. Fico lembrando dos meus amiguinhos com suas pernas atrofiadas e pensando se teria sido em vão o esforço de Albert Sabin para extinguir a paralisia infantil, por meio da vacinação. Fico pensando se essa gente que fala contra a vacina, que está salvando a humanidade nessa pandemia de Covid, por acaso foi vacinada quando criança ou se chegou aqui sem nenhuma contribuição da ciência.

Acho que o historiador e cientista Youval Noah Harari está profundamente equivocado em sua trilogia best-seller, especialmente com as previsões probabilísticas que faz da “revolução dos robôs”. A inteligência artificial não vai precisar se dar ao trabalho de anular ou talvez até extinguir a raça humana, parece que nossa burrice e nossa ignorância coletiva vão dar conta disso sozinhas.

(José Caldas da Costa, geógrafo e jornalista há mais de 40 anos)

 

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segunda-feira, 1 de novembro de 2021

A música de Roberto Carlos que marcou a vida de Ayrton Senna: segredo contado em livro de Maciel de Aguiar, escritor capixaba

1.11.21
 A música de Roberto Carlos que marcou a vida de Ayrton Senna: segredo contado em livro de Maciel de Aguiar, escritor capixaba


O escritor Maciel de Aguiar, 69 anos (11.02.1952), passou toda a pandemia recluso, como um ermitão, sem ver televisão, ou abrir sites noticiosos. Sabia da pandemia e se isolou dela, mas com um propósito claro: trabalhou 20 horas por dia para tirar de sua caixa de memórias e da caixa de papelão onde estavam guardados recortes de jornais e revistas, dezenas de fitas cassetes e cadernos de anotações, a história que traz a público no livro “Ayrton Senna – o herói do Brasil”, a ser lançado em dezembro, nos dias 1º, em São Paulo, com apoio do Instituto Ayrton Senna, e 3, no Rio de Janeiro.

Escrever dói, ainda mais quando se transforma num processo de reencontro com uma história que ele preferia esquecer e que tentou queimar, mas o vento não deixou. Isso mesmo. Depois da morte de Senna, Maciel, como milhares e talvez milhões de fãs, nunca mais viu uma corrida de Fórmula 1 e procurou esquecer o que viveu como num processo de cura da perda, que abalou o Brasil no dia 1º de maio de 1994. E mais: Maciel tentou queimar tudo o que havia guardado. Mas o vento da praia de Guriri não deixou.

São histórias por trás da história daquele que, depois de Pelé, foi o maior ídolo nacional, mas praticando um esporte longe de ser popular. E como pessoas que não tinham dinheiro para comprar uma bicicleta, quanto mais um carro, ou um carro esporte, que nunca entraram sequer num kart, podem ter se apaixonado pela Fórmula 1? A resposta é simples: Ayrton Senna da Silva, ou, como literalmente berrava Galvão Bueno nas transmissões da TV Globo, “Ayrton Senna do Brasil”.

Tudo começa para Maciel de Aguiar como começou para toda uma geração. “Nos anos 60 e 70, a gente gostava era de futebol. Não se conhecia outro esporte. Mas nos anos 70 o Emerson Fittipaldi começou a ganhar corridas e chamar a nossa atenção para a Fórmula 1. Mas veio aquela história de ter sua própria marca e os tempos de glória nas pistas se foram. Tinha ainda o José Carlos Pace, que era simpático, mas morreu cedo (num acidente aéreo em Mairiporã (SP), num monomotor em que viajava) e o Piquet, que era bom nas pistas, mas antipático. Então, surgiu Ayrton Senna... “, começou a contar Maciel de Aguiar.

Nossa longa entrevista de duas horas, feita com os recursos atuais da tecnologia, ele em seu autoexílio em casa em São Mateus e eu em Vila Velha, começou pelo meu interesse pela história da princesa africana escravizada Zacimba Zaba e do Museu Intercontinental AfricaBrasil, que está fechado há vários anos em São Mateus.

O BIÓGRAFO DOS NEGROS POBRES


Maciel de Aguiar conta 142 livros publicados, sendo 40 deles somente de personagens quilombolas de São Mateus. Alguns, porém, são grande sucesso editorial, o maior deles, simplesmemte, “Pelé”, que já está traduzido em 10 línguas diferentes.

“Escrever sobre Pelé foi conselho de Oldemário Touguinhó, com quem eu trabalhava no Jornal do Brasil. Eu escrevia sobre os negros de São Mateus e o Oldemário me falou: ´ninguém vai se interessar pela história de preto pobre, escreva sobre preto rico que todo mundo vai ler; você tem que escrever sobre o Pelé´. O resto é história e o resultado está no sucesso do livro, mas que me abriu portas para eu falar também dos pretos pobres de São Mateus”, observa Maciel.

 

Tem também “Nós, os capixabas”, “O Sabiá e eu”, sobre Rubem Braga, “Niemeyer – o gênio da arquitetura” e, o último antes da pandemia, “Roberto Carlos – as canções que você fez para mim”. Aliás, foi Roberto Carlos que o levou a Ayrton Senna. Não fisicamente, mas de maneira indireta. Como quase tudo na vida de Maciel, isso também não tem explicação lógica. Foi assim desde seu súbito interesse, ainda pré-adolescente, pelas histórias contadas pelos negros centenários no mercado do Porto de São Mateus, onde também ouvia histórias de prostitutas e de jogadores de capoeira.

“Eu estava colecionando histórias para o livro que havia decidido escrever sobre a trilha sonora da vida das pessoas. Como todo mundo no Brasil, de algum modo, tem Roberto Carlos em sua vida, eu decidi que reuniria essas histórias de pessoas que tiveram uma música dele a marcar suas vidas”, disse Maciel, que começou a colecionar essas histórias em 1969, quando tinha 17 anos. “Ouvi mais de 300 histórias: caminhoneiros, prostitutas, empresários, empregadas domésticas, jogadores de capoeira, religiosos. No final, muita gente citava a mesma música, ‘Detalhes’ na liderança, e decidi que faria o livro com 50 histórias”.

E onde Roberto entra nessa história do Senna? Calma, que vamos chegar lá, porque Maciel, como tantos de nós, brasileiros normais, começou a se encantar com Ayrton Senna quando o piloto começou a mostrar sua incrível habilidade nas pistas debaixo de chuva. Primeiro, na prova de Montecarlo, onde saiu em 12º lugar e foi ultrapassando um a um. “Quando ele estava para ultrapassar o Alain Prost e assumir a ponta, terminaram a corrida. Depois, veio a antológica prova de Estoril, em Portugal, em 21 de abril de 1985. A Tolleman havia dada uma oportunidade para ele, que era um predestinado, e havia ido para a Lotus. Quando ele ganhou Estoril, coloquei no meu radar acompanhar sua carreira e escrever um livro sobre todas as vitórias de Senna”.

Permitam-me fazer parêntesis. Conheci Senna nesse ano de 1985. Ele iria estrear pela Lotus na prova de abertura da temporada, em Jacarepaguá. Eu trabalhava em O Globo, a Lotus fez uma exposição no BarraShopping e Senna iria fazer uma visita. Renato Maurício Prado era o editor de esportes e recebeu a informação. Não havia nenhum repórter na redação, eu era redator com experiência em reportagem. Então, fui escalado, junto com um fotógrafo chamado Vasco, para entrevistar Senna. E foi assim que tive a oportunidade de estar frente a frente e conversar com o que viria a ser o maior piloto brasileiro de Fórmula 1 de todos os tempos – ainda no início da carreira. E eu nem poderia imaginar isso. E agora me vem essa história contada por Maciel de Aguiar.

A prova do Rio, dia 7 de abril, foi vencida por Alain Prost, da McLaren. Nelson Piquet, ainda o piloto brasileiro mais em evidência, abandonou a prova por quebra da suspensão. Senna também saiu por falhas técnicas do carro.  

Maciel gravava os áudios de todas as corridas com um gravador perto da televisão. E guardava as que Senna ganhava. Começou a pedir aos seus amigos de bancas de jornais de São Paulo que guardassem exemplares do que saía nas vitórias do piloto brasileiro.

O ENCONTRO CASUAL COM O ÍDOLO

Mais uma vez o acaso trabalhou a favor de Maciel. O escritor estava em Interlagos em 1991 para acompanhar uma das provas mais lembradas da carreira de Senna, quando sua McLaren-Honda quebrou quase todas as marchas, o que exigiu dele um esforço físico anormal, vencendo a prova “no braço”, mas fazendo tanto esforço que não conseguiu sair sozinho do carro.


“Eu tinha ido assistir à corrida, não tinha começado a escrever nada. Apenas estava juntando material. Tinha pedido o pessoal das bancas para guardar jornais e revistas da prova para mim. Recolhi tudo e parti para Guarulhos, onde pegaria um voo para Vitória. Um amigo jornalista queria falar comigo e marcou no aeroporto, porque iria ouvir uns alemães que viriam investir no Brasil. Ele me chamou e fomos para a sala vip. Enquanto ele entrevistava os alemães, eu fiquei ali sentado numa poltrona e decidi dar uma olhada nos jornais e revistas que havia adquirido sobre o GP de Interlagos”, conta Maciel.

Jornais e revistas espalhados em cima de uma poltrona, Maciel relata o que aconteceu a seguir e que mudou sua vida: “Entrou um cara na sala e nem olhei para ele. Sentou-se na minha frente, a uns dois metros de distância. Eu estava fixado nos jornais e só vi as pernas. Ele deu bom dia, eu respondi e nem olhei para a cara dele. Continuei separando os recortes”.

O “cara” sentado à sua frente viu aquele monte de jornais separados e comentou: “Você gosta de Fórmula 1 mesmo, hein?!” Quando levantou os olhos, Maciel custou a acreditar no que via: em sua frente estava, em carne, osso e simpatia, simplesmente, Ayrton Senna da Silva. E ainda teve presença de espírito para brincar: “Eu não gosto muito não, sou é fã de um tal Ayrton Senna. E ele devolveu: acho que já ouvi falar nele”.

Maciel começou a conversar com Senna e segurou a onda sobre sua ideia de escrever um livro. Afinal, ele nem sabia se o livro sairia, estava apenas juntando material. Quando Senna abriu a pasta 007 e pegou um walkman para colocar o fone no ouvido, Maciel lembrou-se de sua pesquisa sobre Roberto Carlos. “Eu vi logo em destaque a Bíblia dentro da pasta dele e resolvi fazer as duas perguntas padrão que fazia por onde andava: Você gosta de Roberto Carlos? Qual a música dele que marcou sua vida?”

´Gosto, como todo brasileiro´, respondeu bem ao seu estilo Senna. De repente, o piloto parou e falou: “Já dei centenas de entrevistas e ninguém nunca me perguntou isso. Eu tenho uma história de uma música de Roberto Carlos”.

Maciel conta que, naquela hora, “gelou”. “Qual é a história?”, devolveu. Senna, meio irônico, perguntou: “Você está com tempo?”. Para quem estava em busca de boas histórias, todo o tempo do mundo, até mesmo perderia o voo. Então, Senna contou que quando pilotava kart queria andar a 200km por hora, mas o kart dava no máximo 90km e ele ficava frustrado.

Maciel relata que Senna, então, contou a história da música: “Quando fui estrear na F1 andei a até mais de 200km por hora, mas, na primeira corrida que ganhei, quando cheguei a 200km eu, casualmente, me lembrei da música de Roberto”. E ainda hoje Maciel se emociona: “Bicho, de repente, em minha frente, o Senna cantarolando: eu vou, voando pela vida, sem querer chegar, eu vou sem saber pra onde, nem quando vou parar... “

“Ele era fabuloso. Perguntei: você já contou isso para alguém? E ele me disse que nunca falou de coisas antigas. Perguntei porque não falou na entrevista na tevê junto com Roberto Carlos e ele, simplesmente, disse: ele não me perguntou e eu esqueci. Rapaz, ele contou a história e ficou contemplativo, olhando a pista do aeroporto. Até se emocionou. E eu fiz a pergunta que desmoronou o ídolo: qual sua velocidade preferida?”.

Segundo Maciel, naquela hora Senna ficou pensativo e falou: “Ninguém nunca me perguntou isso. Quem é você que me faz perguntas que jornalista nunca fez? Mas vou te revelar uma coisa que nunca falei antes: já andei a 300km por hora, quando o velocímetro bate em 200km por hora eu me sinto nas nuvens, é como se eu saísse de mim. Eu fico em transe”. Naquela altura, os dois já conversavam como dois velhos amigos. Aquele papo durou cerca de uma hora, conta Maciel de Aguiar.

“Na primeira corrida que ganhei, a música do Roberto me veio casualmente à mente e, quando recebi a bandeirada, cantarolei dentro do carro, eu vou voando pela vida... “, contou.

Senna ficou “encanado” com aquela história e Maciel falou que era escritor e ele perguntou sobre o que escrevia. “Escrevo sobre coisas emocionantes na vida das pessoas”, respondeu o escritor capixaba.

Maciel conta que Senna sorriu e apenas disse: “Você podia escrever sobre minhas vitórias”. Àquela altura, o escritor já estava juntando o material, mas não contou para o ídolo. Apenas disse que gostaria de escrever. “Fico feliz em saber, já está autorizado. Mas você conhece os bastidores? Sabe do que aquele (soltou um palavrão) do Balestre fez?” (o francês Jean-Marie Balestre cassou a superlicença do piloto depois que Senna o acusou de beneficiar seu compatriota Alain Prost no GP do Japão que encerrou a temporada de 1989 e quase comprometeu sua participação no campeonato de 1990)

O escritor ajudou com outro palavrão e ambos riram da situação. Como a conversa fluía, os assessores de Senna ficaram à parte, Senna pediu que Maciel, quando estivesse com Roberto Carlos, falasse da música “200km por hora” (o nome original da música é “120... 150...200km por hora”), “que marcou minha vida”.

Antes de se despedirem, Senna abriu a maleta 007 (“tinha uma Biblia, um alkman e algumas outras coisas, a Bíblia vi logo, estava bem em evidênica”), tirou um cartão de visita, anotou um número de telefone pessoal e escreveu atrás: superação, dedicação e gosto pela vitória. Suas últimas palavras foram: “Quando você escrever meu livro, para você não se esquece de que esta é a síntese de minha vida”.

“Nos despedimos, ele colocou o fone no ouvido e nunca mais nos vimos. Me entusiasmei e comecei a escrever ´Ayrton Senna, o herói do Brasil´. Eu já tinha muitas vitórias dele para escrever”.

1º DE MAIO DE 1994: “SENNA BATEU FORTE”

Mas tudo mudou em 1994 e por muito pouco o Brasil não ficaria sem essas doces histórias e a narrativa de Maciel, filhote do sabiá Rubem Braga, das grandes vitórias de seu maior piloto. Na manhã do domingo, 1º de maio de 1994, na curva do Tamburello, como narrou Galvão Bueno na época, “Senna bateu forte”.


“Eu tinha ido na padaria comprar pão e deixei tudo pronto para gravar. Começou a corrida, o Galvão naquela empolgação, Senna voando baixo. O ambiente estava pesado. O Rubinho Barrichelo escapou de grave acidente nos treinos de sexta-feira, o austríaco Roland Ratzenberger morreu no treino de sábado. Aliás, sobre isso há uma história muito sinistra”, conta Maciel.

E essa história somente ele soube quando, em 2020, quando chegou a pandemia e ele resolveu mergulhar para escrever o livro, ligou para um empresário amigo de São Paulo e falou que, depois de 28 anos, e de nunca mais ter assistido a uma corrida de Fórmula 1, estava pensando em retomar o projeto e terminar o livro das vitórias de Ayrton Senna.

“Foi então que ele me disse: então, vou te contar um segredo”, recorda-se Maciel de Aguiar. E o amigo empresário contou que, como de costume, ele e outros amigos se reuniram naquele 1º de maio de 1994, na casa de um sócio do pai de Senna, no Alto Pinheiros, para assistir a corrida. Era um hábito: eles comiam churrasco, bebiam e acompanhavam a prova.

“Ele me contou que, meia hora antes da prova, de repente, estavam todos na sala e entrou a mulher do empresário dono da casa, aos prantos, chorando em desespero. Todo mundo parou e a mulher falou: hoje o Aytron Senna vai morrer. Ele me contou que o copo caiu da mão, o marido saiu atrás dela querendo saber o que houve. O clima ficou pesado, muita gente foi embora. Como tinha morrido o austríaco na véspera, eles pensavam que ela falava daquele acidente”, relata.

Essa prova, de San Marino, foi marcada pela tensão. Logo na largada, um acidente envolveu vários carros, um pneu se soltou e feriu nove pessoas fora da pista. O safety car entrou na pista e manteve cada carro em sua posição enquanto dava voltas lentas. Na sexta volta, o safety car saiu da pista e liberou a prova. Na sétima volta, o carro de Senna não obedeceu aos seus comandos na curva do Tamburello e chocou-se direto com a mureta. “Senna bateu forte”, anunciou Galvão Bueno.

E Maciel continua contando o que ouviu do empresário: “Quando o Galvão falou aquilo peguei minha mulher, fui para casa e não consegui ver mais nada. Fui para o quarto. Foi quando minha mulher entrou no quarto e disse: Ayrton Senna morreu”.

O FOGO QUE O VENTO NÃO DEIXOU PEGAR

Foi o dia em que a terra parou para quem acompanhava a carreira espetacular do piloto brasileiro. Maciel conta que havia chegado com o pão e colocado para gravar a corrida. Quando ouviu o “Senna bateu forte” de Galvão Bueno, o escritor ficou tão angustiado que juntou todo o material perto da TV, colocou tudo na caixa, junto com tudo o que havia de Senna, lacrou e deixou num canto.

“Fiquei angustiado. Quando deu a tarde, confirmaram a morte dele. Veio o Fantástico à noite, a coletiva com a fala da direção da prova. Contam o momento da batida e revelam que o velocímetro travou na hora da batida. Advinha em que velocidade? A 200km por hora, nem um milímetro a mais, nem a menos. E eu me lembrei do que ele falou: a 200km por hora eu me sinto nas nuvens, parece que estou em outro plano”, emociona-se Maciel.

O escritor capixaba disse que “entrou em parafuso”. “Eu me desesperei. Era a única pessoa no mundo que sabia disso, ele não tinha falado com mais ninguém. Não vi mais televisão, não vi enterro, não vi nada. Cheguei à conclusão de que não tinha condições emocionais de escrever o livro. Não quero mais saber de Fórmula 1, em vou pirar. Peguei a caixa com os recortes de jornais, os textos escritos à máquina com 41 corridas e levei para queimar na praia. Peguei uma caixa de fósforos, dezenas de fitas cassetes, cadernos de anotações. Eu não tinha outra solução, estava pirando com tudo aquilo. Ele me falou: 200km por hora... peguei tudo, fui para Guriri. Gastei uma caixa de fósforos sem conseguir colocar fogo no material, porque o vento não deixava”.

“Tudo para mim era uma maluquice. Eu nunca ansiedade louca. Sem conseguir tacar fogo, coloquei tudo no carro e disse: lá no porto, com menos vento, eu queimo. Mas me distraí com alguma coisa e fiquei rodando com aquilo dentro do carro. Cheguei no porto, onde tenho os museus, e pedi ao menino que lavava o carro para limpar o carro para mim. Ele viu aquela caixa, tirou e guardou. E eu apaguei tudo de minha memória”, observa.


De novo entra Roberto Carlos na história. Depois de 25 anos, Maciel conta que ainda estava encrencado com o livro de Roberto Carlos, que ele tinha começado em 1969. Andava atrás da irmã Fausta, que tinha cuidado de Roberto no educandário em Cachoeiro, quando ele era pequeno, porque achava que tinha algum segredo no medalhão que Roberto usava no pescoço”.

A história do medalhão, conto em outra oportunidade, mas o fato é que, antes de morrer, a irmã Fausta resolveu recebe-lo para contar o “segredo do medalhão”, e ele fez a pergunta da música de Roberto que mais marcou sua vida. E assim foi que ele fechou o livro de Roberto Carlos, com a música preferida de irmã Fausta como 49ª e a de Ayrton Senna da Silva como a 50ª de seu livro “Roberto Carlos – as canções que você fez pra mim”.

SALVO PELA EXPULSÃO DA GUERRILHA

Mas, afinal, que é esse escritor capixaba cercado de tantas coincidências que lhe ajudam a escrever seus livros? Para aguçar mais a curiosidade do leitor, vou contar: Maciel de Aguiar, nascido em 1951 em Conceição da Barra, mas criado em São Mateus, para onde a família se mudou quando ele ainda era pequeno, somente pôde escrever tanto, e contar tantas histórias, porque foi expulso da luta armada por seus antigos companheiros do PCBR – Partido Comunista Brasileiro Revolucionário.

Aos 16 anos, com dinheiro dado por um dirigente do partido, saiu de casa em São Mateus e foi para o Rio de Janeiro panfletar contra a ditadura militar. O pai, um velho marinheiro, que havia rodado o mundo e conheceu Rubem Braga na segunda guerra mundial, na Itália, quando Maciel tinha 10 anos perguntou o que ele queria ser: “Respondi que queria ser escritor. Ele perguntou o que eu queria escrever, e eu disse que queria ser cronista e poeta. Ele me disse que poeta eu poderia até ser, porque o que mais havia era poeta ruim, mas que cronista não seria, porque nunca conseguiria escrever como Rubem Braga”.

Então, quando aos 16 o menino disse que iria embora para o Rio, o pai somente disse: pode ir, o mundo é seu. E no Rio foi cooptado por um velho quadro do partidão, que era de São Mateus, para treinar guerrilha em São João do Meriti.


“Uma noite, eu estava na sentinela, deixei o fuzil de lado e fiquei escrevendo poesia. Veio um dos companheiros, pegou o fuzil sem eu saber e escondeu. No outro dia, me levaram a julgamento. Acho que naquele dia eles iriam me justiçar como exemplo aos outros. Questionavam que poesia era coisa de liberalismo. Mas uma companheira, Ranúsia, uma estudante de Medicina pernambucana, me defendeu e me salvou. Disse que poesia era uma forma de luta. Mas me expulsaram da guerrilha e eu fui atrás do Rubem Braga, para me ajudar a conseguir emprego”, contou.

A expulsão da guerrilha salvou sua vida. Dos quatro seus companheiros de ação no campo de treinamento e nas panfletagens, Vitorino Alves Moitinho, o Paulo Sérgio, que era Bahia, com passagem por São Mateus, e Ramiro Maranhão do Vale, o Motorista, morreram sob tortura na Barão de Mesquita; Ranúsia Alves Rodrigues, a Florinda, e Almir Custódio de Lima foram metralhados e carbonizados dentro do fusca vermelho placas AA 6969, o mesmo que usavam para as ações de panfletagem nas ruas do Rio de Janeiro.

Nilmário Miranda, que presidiu a comissão da verdade na Câmara dos Deputados, publicou  que os quatro foram assassinados na chamada “Chacina de Jacarepaguá”, em outubro de 1973, em ação de agentes da repressão. “Nilmário ficou com a versão dos militares”, garante Maciel.  Vou contar, em breve, a história completa desse episódio, na visão de quem estava lá dentro. 

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(José Caldas da Costa, jornalista há 40 anos)

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