Minha pesquisa levou a um capítulo especial dedicado ao tema
em “Caparaó – a primeira guerrilha contra a ditadura” (Boitempo, SP, 2007).
Nele abordo, por exemplo, o erro cometido pelo governo militar de misturar
presos políticos com presos comuns, e o erro cometido pelos presos políticos de
acharem que era possível “ganhar os presos comuns para a causa”.
Tanto um quanto o outro são admitidos por quem os cometeu.
No caso do governo, eu me ative à vasta literatura que pesquisei, juntamente
com jornais e revistas. No caso da resistência, baseei-me, principalmente, em
fontes primárias, enquanto entrevistava os personagens do episódio central do
livro.
As chamadas maiores organizações criminosas brasileiras
nasceram desses e outros erros. Por exemplo, o Comando Vermelho tem um nome
sugestivo exatamente de sua origem no relacionamento de presos comuns e
políticos em penitenciárias como Frei Caneca e Ilha Grande (na foto do acervo de O Globo). Nasceu como Falange
Vermelha.
Chegamos ao capricho de ter um livro contando a história da
origem dessa organização: “Quatrocentos contra um”, de William da Silva Lima, o
“Professor”, que teve os primeiros contatos com presos políticos ao
encontrar-se com marinheiros presos em 1963 e depois com outros presos
políticos do período pós-golpe. Assim como ele, quantos outros tiveram esse
contato!
Um dos meus entrevistados, Avelino Capitani, me disse:
“Cometemos a ingenuidade de acreditar que poderíamos conquistar os presos
comuns para nossa causa”. E chegou a ser convidado, depois que cumpriu pena por
integrar a resistência ao regime, para “assessorar” uma organização criminosa
do Rio de Janeiro. Recusou o convite, “por princípio”. Mas certamente outros
pegaram. “A proposta era boa”, admite.
A distensão lenta e gradual fez com que o regime militar se
prolongasse por uma geração – ou seja, quem era criança nos anos 60 cresceu sob
o regime; e muitos desses repetiram suas lições para seus filhos. De um modo ou
de outro. Não se pode saber, com certeza, por quantas gerações os erros de uma
podem se perpetuar, até se dissipar ante novos ensinos e práticas sociais.
O PCC (Primeiro Comando da Capital), criado nos presídios
paulistas, tem, segundo as autoridades, em Marco Willians Herbas Camacho, o
Marcola, nascido em 1968, um de seus fundadores e seu líder nas últimas
décadas, mesmo preso na chamada penitenciária de máxima segurança máxima do
País – condenado a mais de 300 anos de prisão.
E quem é Marcola? Um “cliente” do sistema penitenciário
desde os 18 anos. Isto depois de ter passado por instituições de menores na
infância e adolescência. Filho de um boliviano e uma brasileira, que morreram e
o deixaram órfão pelas ruas de São Paulo. Menino cheirador de cola, virou
Marcola. Foi de trombadinha a líder de organização, registra a Folha de São
Paulo. Curioso é que sua formação intelectual se deu, inteiramente, nas
prisões, lendo grandes pensadores.
Inegável é que Marcola é fruto de mais um desses erros que
vão se perpetuando. O Brasil está para os bolivianos pobres assim como os
Estados Unidos estão para os mexicanos. Eles, os bolivianos, são hoje o maior
grupo de imigrantes em São Paulo – onde foram e são explorados em regimes
análogos a escravidão, especialmente em oficinas de confecções de bairros
populares, como Braz. Nessas oficinas nascem e crescem crianças que, se derem
sorte, poderão escapar de ser um novo Marcola – mas o risco de repetir é muito
grande.
Notícias recentes da imprensa dão conta de que Comando
Vermelho e PCC ameaçam explodir postos de gasolina e caminhões tanque para
obrigarem o Governo a agir na redução do preço dos combustíveis. Mas o pior parece
que ainda está por vir. O Jornal da Band noticiou que mercenários africanos,
continente de onde procede, atualmente, a maior leva de imigrantes para o
Brasil, estariam treinando em guerrilha urbana membros de facções criminosas no
interior da floresta amazônica.
O esgarçamento social, tanto do ponto de vista econômico
quanto de valores, torna o campo fértil para o surgimento de coisas assim.
Existem “exemplos” que surtem efeitos muito rápidos, mas outros virão depois de
uma ou duas gerações. Efeitos econômicos são sentidos de imediato, mas somente
bem depois sentiremos, por exemplo, o verdadeiro efeito dos desatinos
verborrágicos e de desconstrução de valores humanos praticados, principalmente,
pelo atual inquilino do Palácio do Planalto.
Quando leio sobre a saga de Oswaldo Cruz e sua cruzada
vacinista de 100 anos atrás, fico pensando se a humanidade avançou ou regrediu
em um século. Fico lembrando dos meus amiguinhos com suas pernas atrofiadas e
pensando se teria sido em vão o esforço de Albert Sabin para extinguir a
paralisia infantil, por meio da vacinação. Fico pensando se essa gente que fala
contra a vacina, que está salvando a humanidade nessa pandemia de Covid, por
acaso foi vacinada quando criança ou se chegou aqui sem nenhuma contribuição da
ciência.
Acho que o historiador e cientista Youval Noah Harari está profundamente
equivocado em sua trilogia best-seller, especialmente com as previsões
probabilísticas que faz da “revolução dos robôs”. A inteligência artificial não
vai precisar se dar ao trabalho de anular ou talvez até extinguir a raça
humana, parece que nossa burrice e nossa ignorância coletiva vão dar conta
disso sozinhas.
(José Caldas da Costa, geógrafo e jornalista há mais de 40
anos)